
Que a ciência não é neutra, isso já sabemos. Mas os caminhos que levam à parcialidade da ciência são repletos de mediações, impossível de esgotar num texto como esse. Tentemos então, traçar um brevíssimo panorama geral.
A gênese da ciência
Primeiramente, a tentativa de captação da realidade como ela é em si, na sua imanência, é um esforço existente desde os primórdios da humanidade. Como não poderia ser diferente, nossos primitivos antepassados enfrentaram muito mais limitações nessa tarefa do que nós atualmente. Os mais longínquos representantes da humanidade em direção ao passado, consequentemente, tinham um domínio extremamente limitado do mundo. Ainda assim, acertadamente tinham algum conhecimento da realidade, do contrário, não estaríamos aqui atualmente.
Esse escaço conhecimento dos humanos primitivos, na realidade, estava amalgamado com práticas mágico-animistas. Apesar de podermos falar de que nesse momento se tinha o germe, o embrião da ciência, não podemos afirmar que aquilo era de fato ciência. O cotidiano dos povos primitivos era, predominantemente, guiado pelo reflexo mágico do mundo. Apesar disso, pelo processo de trabalho exigia-se desses pioneiros um constante porém contraditório avançar no conhecimento imanente do mundo, ainda que não totalmente consciente.
Identidade própria e conflito com a religião
Até a Antiguidade Clássica, portanto, a tendência de refletir a realidade como ela é em si, desantropomorficamente, esteve de forma indiferenciada junto ao reflexo religioso. Este, ainda que com traços diferentes daquele mágico primitivo, atribuia à realidade um caráter transcendente.
Só na Grécia Antiga, como diz Lukács, é que o reflexo científico de fato adiquire sua identidade própria. Por muitos motivos que não comportam aqui, somente com os gregos clássicos é que se desenvolve uma metodologia científica própria. Esta torna possível a generalização dos conhecimentos imanentes do mundo. Todavia, é só com o advento do capitalismo que a ciência passa de fato a ser a forma de reflexo predominante. Da Antiguidade Clássica até a superação do mundo feudal, ciência e religião travaram conflitos memoráveis. Podemos exemplificar essas lutas na perseguição da Igreja Católica Apostólica Romana a Copérnico, Giordano Bruno e Galileo.
Nesse contexto, perante inegáveis achados do reflexo científico e suas repercussões no cotidiano, a religião representada aqui pela Santa Sé, admitiu a dupla verdade. A individualidades que melhor representavam os avanços científicos, recorrem a Teoria da Dupla Verdade como forma de garantir a própria integridade física.
Predomínio da ciência e capitalismo
Com a queda do Antigo Regime e o predomínio do capitalismo, assistimos uma situação inversa. Agora é a religião que lança mão da dupla verdade como meio para manter posições em um mundo predominantemente guiado pela ciência. Porém, a burguesia precisa da ciência e de desenvolvê-la para poder garantir e ampliar sua reprodução. Ao mesmo tempo, como classe dominante precisa restringir o acesso ao que há de mais avançado em termos de conhecimento científico. Surge então, a partir das contradições da nova sociedade, uma ciência comprometida não imediatamente com a imenência do mundo, mas com os interesses do capital. Lukács, ao que nos parece, toma o neopositivismo como melhor exemplo dessa situação.
Contraditoriamente, o reflexo científico da realidade sempre tende ao desvelamento do real como ele é em sua imanência, ou seja de forma desantropomórfica. Assim, apesar dos esforços em negar a ciência para a classe trabalhadora, esta acaba se apropriando pelo menos de parte das descobertas da ciência. Isso explica ainda outro fato. Mesmo o capital promovendo uma educação voltada para o atendimento de necessidades mercadológicas, nem sempre o resultado é positivo. Nem todos que passam pelo processo educativo viram imediatamente mão de obra numa fábrica. Alguns se tornam filósofos e/ou artistas, nas mais diversas possibilidades de manifestação estética.
O neopositivismo, portanto, expressa segundo Lukács o padrão de ciência da burguesia. Por negar a realidade em sua imanência, o neopositivismo possibilita todo tipo de manipulação do real, inclusive aquela de tipo religioso-teológico. Não é por acaso que muitos autores atualmente celebram o retorno do religioso que, segundo eles, tem se dado pela perda de confiança na ciência. De fato, o fenômeno religioso tende a ganhar espaço num mundo em que a ciência que prevalece nega o status ontológico da realidade. Seja essa prevalência dentro ou fora da academia.
Desse modo, só podemos considerar e entender a aclamação do retorno do religioso de forma séria se colocada nesse contexto. Não é pela falha do reflexo científico, mas pela manipulação de seus resultados operada pelo modo de produção atual que faz surgir um espaça de manobra propício para a religião. Essa manipulação é, segundo depreendemos de Lukács, condensada teoriacamente em abordagens neopositivistas.
O padrão científico burguês, ou seja, o neopositivismo, atende muito bem as exigências do mundo do capital. A burguesia precisa operar todo tipo de manipulação da realidade, inclusive por via das mais variadas ciências particulares sob o manto neopositivista. Só interessa para o capitalismo fazer avanços na ciência quando estes significam alguma possibilidade de expansão dos lucros. Quando não é essa a situação, o capital só permite aos trabalhadores “se virarem” com toda sorte de distorção e mistificação da realidade, inclusive as religiosas.
O combate que precisamos fazer
Está claro que tal ciência burguesa impõe limites para a plena realização inclusive da ciência, e ainda mais no sentido da realização plena das potencialidades humanas. Escolas, universidades e instituições de ensino em geral, incluindo aqui as particulares, são promotoras desse tipo de pensamento científico. Consequentemente, devemos combater diariamente uma escola que promove uma “ciência” que nega a realidade, a imanência do mundo. De igual modo, precisamos severamente criticar uma universidade que defende, legitima e forma com base num padrão científico que mistifica o mundo, que o toma de modo antropomórfico adimitindo sua transcendência.
Por fim, a ciência burguesa da burguesa, do capitalismo, ou seja, o neopositivismo, não atende as necessidades reais da classe trabalhadora. Devemos combatê-la e reivindicar uma ciência assentada em bases ontológico-materialistas, cujo compromisso seja com a imanência, com o em-si do mundo, e não com o lucro. Todavia, para que prospere tal ciência, antes temos que suplantar o capitalismo.