
Tendo sido superada pelo reflexo científico, a religião persiste com considerável influência no cotidiano das pessoas. Superação aqui, vale dizer, é no sentido hegeliano recuperado por Marx. Uma das razões para este fato tem relação com sua concepção ética e como ela se encaixa no contexto de classes sociais antagônicas, destacadamente no seio do capitalismo em crise estrutural.
É comum que para a maioria das pessoas seja impensável uma sociedade sem um conjunto de normas, de valores que norteiam o convívio social. Não é incomum também que no geral, os indivíduos geralmente associam, em última instância, esse corpo ético a uma esfera fora do real. Embora não se afirme tacitamente que esse padrão ético seja produto de um Deus, tende-se a considerá-lo como não sendo produzido e desenvolvidos pelos próprios humanos.
Por esse motivo é que para muitos, pensar o mundo sem religião é algo totalmente absurdo. Imagina-se logo que mergulharíamos num caos absoluto, sem regras, sem pudor: todos contra todos. As sociedades como a conhecemos entrariam em colapso. A religião com seu conjunto ético seria a salvaguarda final para impedir uma tragédia de tal monta.
É como se, em último caso, um padrão de regras e concepções sobre o que é certo ou errado, bom ou ruim, não fossem uma elaboração do ser social ao longo da história, mas brotassem de alguma esfera superior transcendente.
Essa concepção de ética, a qual recorre o reflexo religioso, é claramente mistificadora. Ela pretende que um ser não-objetivo, portanto um não-ser, seja ao final das contas, responsável por criar a moral, os valores, a ética! Na sequência, subjuga a humanidade a cumprí-los. Levadas até às últimas consequências, a ética transcendente religiosa pressupõe a negação da história social.
Ao mesmo tempo, a ética segundo o reflexo religioso, é uma entre outras tentativas de sustentar uma ontologia religiosa no mundo que cada vez mais rejeita as explicações místicas. Do mesmo modo como recorreu a própria teoria da dupla verdade para tentar manter posições ante o avanço incontrolável do desenvolvimento científico.
Bom, ao modo de produção vigente, como sabemos, o avanço da ciência representou condição ineliminável para seu predomínio. Ou seja, o capitalismo só alcança sua vitória definitiva sobre o Antigo Regime com a superação do reflexo religioso pelo científico. O capital precisa de uma leitura de mundo desantropomórfica e imanente para garantir sua reprodução, sua perpetuação enquanto modelo produtivo dominante. Não obstante, interessa ao sistema do capital mistificar a realidade ou o conhecimento desta quando, claro, o domínio de tal conhecimento em sua imanência representa uma ameaça ao capital.
Desse modo e nessas condições societárias, uma ética mistificadora do real é bem vinda como um instrumento – entre tantos outros – do qual faz uso o capital para manter sua hegemonia. É importante ao modo de produção vigente que os indivíduos acreditem ainda que por fim e ao cabo, as regras de condutas sociais não são moldadas pela classe dominante, mas sim, que são oriundas de um não-ser.
A religião e seus deuses são para o capital um bode expiatório perfeito: além de um significativo nicho de mercado que movimenta bilhões, consola os miseráveis mantendo-os dóceis e ainda aceitando – embora que por mediações diferentes do passado – que no final, a culpa é do indivíduo singular. Essa lógica apresenta-se na política brasileira recente da forma mais esdrúxula que jamais podíamos imaginar.
Além disso, a religião assim como o capitalismo, privilegia o aspecto individual. Quando as coisas dão errado, a ética religiosa e o espírito do capitalismo se juntam para culpabilizar o sujeito singular.
Vê-se, portanto, que apesar de uma aparente contradição, a ética religiosa mistificadora não se opõe ao modo de produção capitalista e sua lógica interna. Pelo contrário, a religião e sua concepção transcendente de ética é uma poderosa e oportuna aliada da exploração imposta pelo capitalismo vigente.
Mais interessante ainda é que, ontogeneticamente, a ética não tem relação com religião. Mas sobre isso, talvez falaremos em outra oportunidade.