
Eleanor Leacock, no seu livro Mitos da dominação masculina¹ traduzido para o português pela maravilhosa professora Susana Jimenez, traz uma interessante e assertiva ideia sobre a relação entre escravidão e religião.
Para a autora, a Europa usou por muito tempo a religião como desculpa – e legitimação – para a escravização dos povos. Nas palavras da antropóloga estadunidense: “A primeira razão para a escravidão foi religiosa, uma vez que conflitos econômicos na Europa foram, por tanto tempo, travados em termos religiosos.” Aqui, como está explícito, Leacock não se desvia do pressuposto marxista – devidamente comprovado pela história – da produção da riqueza material como base da sociedade.
A novidade é que, assertivamente, Leacock sinaliza que os próprios conflitos econômicos, que podemos aqui estender ao movimento de acumulação primitiva como um todo, tinham sempre na religião um importante sustentáculo. Isso é evidente ao olharmos para a invasão portuguesa no que hoje chamamos de Brasil. A autora ainda ilustra muito bem o papel da religião ao relatar as atrocidades das missões francesas entre os Montagnais-Naskapi, povos que foram alvo dos estudos antropológicos de Leacock.
Aqui no Brasil, como é sabido, toda a cultura dos povos originários foi tida como inadmissível, como indigna aos olhos divinos. Pelo menos segundo o julgamento dos europeus. As divindades indígenas foram demonizadas, sua moral vista como totalmente contrária à santa moral cristã. A religião, portanto, foi usada como meio para inferiorizar esses povos e, uma vez demonizados, coisificados, escravizá-los seria quase como uma consequência necessária.
Os povos indígenas e/ou originários até poderiam ser criaturas de Deus, mas certamente, aos olhos dos saqueadores eram inferiores. Isso era a garantia para que fossem tratados como animais e/ou coisas. Assim sendo, deveriam servir aos brancos europeus. Obviamente, a base por trás de toda essa operação era econômica.
Para além disso, podemos buscar elementos dessa aproximação entre religião e escravidão nos primeiros séculos da era cristã, como expôs didaticamente Anibal Ponce². Aproximadamente em 343³, aconteceu o Concílio de Gangra, e em um de seus cânones lê-se o seguinte: “se alguém, sob o pretexto da piedade religiosa, ensinasse o escravo a não estimar o seu senhor, ou a subtrair-se aos seus serviços, ou a não servir de bom ânimo e com toda a boa vontade, que caia sobre ele o anátema”.
Tal determinação por parte daquele Concílio tem, por sua vez, fundamento na Bíblia: “Todos os servos que estão debaixo do jugo estimem a seus senhores por dignos de toda a honra, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados.” (1 Timóteo 6:1).
Um pouco adiante: “Exorta os servos a que se sujeitem a seus senhores, e em tudo agradem, não contradizendo, Não defraudando, antes mostrando toda a boa lealdade, para que em tudo sejam ornamento da doutrina de Deus, nosso Salvador.” (Tito 2:9,10). Poderia aqui elencar vários outros pontos, mas acredito que já está suficientemente ilustrado.
Tal relação entre religião e escravidão pode até ser chocante para algumas pessoas, mas ela é de certo modo, esperada. A religião é o complexo social mais reacionário em uma sociedade em dado contexto histórico. Tendencialmente, por tanto, a religião sempre reproduzirá a sociabilidade vigente.
Isso significa que, assim como no capitalismo, a religião dominantemente reproduz a sociabilidade do capital, estando a serviço de seus interesses, numa sociedade assentada sobre o trabalho escravo a religião igualmente estará predominantemente a serviço da garantia e reprodução desse modelo de produção da riqueza material.
Por fim, as contribuições de Leacock, para além da importância que têm para compreensão de tantos outros aspectos da sociedade – como a relação entre gêneros -, é extremamente relevante para entendermos o papel da religião no processo de dominação de uma classe sobre outra. Seja no passado ou no presente.